Raul dos Santos Cardoso

O meu início na música

Comecei a aprender musica na banda de Abrunheira, com um Sr. Chamado Canais.
Sou natural de Verride, zona centro. Com um ano de idade os meus pais foram viver para Abrunheira. Aos 10 anos, com o regente da banda, Sr. Canais, comecei o solfejo e clarinete. Ingressei passado algum tempo na banda de Abrunheira no naipe dos clarinetes. Passados seis anos, o mestre Canais, que era muito evoluido na altura, aconselhou-me a concorrer à Banda Sinfónica da GNR de Lisboa. Achei muito arriscado e disse-lhe que não era muito boa ideia.

A Banda da GNR e o Galo de Ouro

Acontece que, por força do destino, o meu pai foi trabalhar para Lisboa, eu fui com ele, e, um dia passei pela banda da guarda para saber se teria ou não possibilidades de ingressar. Havia lá na altura um musico de montemor-o-velho, terra vizinha da minha, Sr. Carlos Filipe, e foi a ele que me dirigi para me avaliar. Ele mandou-me tocar e ficou decepcionado quando me ouviu. Disse-me que não teria grandes possibilidades assim. Mas ofereceu-se para me dar lições todos os dias e dessa forma poderia ter possibilidades de alguma vez poder concorrer. E assim foi. Todos os dias eu ia á Banda da Guarda ter lições com o Sr. Carlos Filipe. Um dia estava eu a ter uma dessas lições, no arquivo, passa o Chefe da Banda (Lourenço Alves Ribeiro) e pergunta-me o que estava eu a fazer lá. Eu disse-lhe que gostava de concorrer á Banda da Guarda e estava a ter lições com esse objectivo, não sei se teria possibilidades…. Ele mandou vir uma parte de clarinete de uma obra de stravinsky, "O Galo de Ouro" e apresentou-a para eu tocar. Claro que sendo uma peça muito difícil pedi-lhe 15 dias para a estudar. Ouviu-me então no fim dos quinze dias, tentar tocar "O Galo de Ouro". Não a toquei bem e ele disse-me que seria muito difícil entrar por causa dos musicos que vinham das bandas do exército, do conservatório, com mais experiência, etc. Mas eu não desisti. Veio o concurso, concorri e fiquei em Nr. 2. Entrei então na banda da GNR e foi o principio da minha carreira como musico profissional.

Como passei para a percussão

Essa é outra história não menos interessante. É que eu nunca gostei de estar parado. Não tinha feitio para isso. Como clarinetista tinha de estar quieto na bancada. Como percussionista estaria sempre em movimento. E isso fascinava-me ! Como na minha terra fazia também parte de uma orquestra ligeira onde por vezes na ausência do baterista era eu que tocava, e sempre gostei da percussão, tinha já umas "luzes" da matéria, senti que talvez pudesse um dia mudar. Entretanto um dos percussionistas da banda da GNR faleceu. O Chefe, Alves Ribeiro, convidou todos os aprendizes (soldados) da época a concorrer á vaga. Então todos foram fazer teste, de todos os naipes. Fizemos as provas apresentadas pelo prof. Estevão Ferreira, percussionista na altura, da banda. Eu fui o escolhido. Comecei a trabalhar arduamente com o Estevão Ferreira. Apreendi ao máximo o que me foi transmitido. Foi-me bastante útil para a minha vida.

As orquestras

Na altura - 1954 - a Banda da GNR era sem dúvida a melhor Banda Militar Portuguesa, (120 Musicos) e já nessa altura tinha as láminas todas que faziam parte da percussão. Marimba, Xilofone, Vibrafone, Glokenspiel, etc. Embora estes instrumentos fossem raros cá em Portugal, as obras nas orquestras que tinham láminas eram as mesmas que se tocavam em todo o mundo e tinham de ser tocadas. Como eu me desenvolvi na matéria fui muito cedo, na altura, convidado. Tinha 27 anos quando comecei na orquestra.

Um jovem ingressar na Orquestra?

Não era muito fácil. Existia um consenso geral na Orquestra e nos directores de que um musico não se escolhia só por referencia. Devia fazer um estágio de dois ou três anos e só depois era convidado a ingressar na orquestra através de um concurso. Tinha de fazer provas e os concursos eram internacionais. O individuo estagiava lá, como convidado, era o preferido em condições de igualdade. Foi assim também que aconteceu comigo.

25 anos nas Orquestras

Permaneci nas orquestras desde 1960 até 1985 em caracter permanente. Como reforço há muitos mais anos. Fiz reforços na RDP, na Gulbenkian, nas ex-orquestras do Conservatório, na Orquestra Sinfónica Portuguesa que era subsidiada pela câmara, etc…
Depois de estar na orquestra sinfónica, conhecedor do repertório, era muitas vezes solicitado a fazer trabalhos noutras orquestras. Como na época não havia muitos percussionistas, era só eu e o Júlio Campos (civil da emissora nacional e depois da Gulbenkian) não nos faltava trabalho.

Bandas Militares: Havia mais percussionistas?

Não. Em nenhuma banda da época havia percussionistas. Poderiam chamar-lhes percussionistas, mas na realidade eram bateristas. Aliás, nas outras bandas militares, marinha e exército, nas partes das suas obras, na altura constava o nome de pancadaria e não percussão. A banda da GNR era claramente superior, ás congéneres e mais evoluida.

A banda da GNR arriscava tocar o repertório das Orquestras?

A banda arriscava mas eram coisas diferentes. Banda era sempre banda. Tinha um poder sonoro diferente mas era apenas uma banda não uma orquestra.

Da Filarmónica para a Banda da Guarda. Da Guarda para as orquestras. E Filamónicas a partir daí?

Sempre que me era possivel e me solicitavam ia sempre ajudar as filarmónicas com muito gosto. Fui muitas vezes a muitas filarmónicas.

A Banda e a arte

Vejo a Banda Filarmónica absolutamente como polo de dinamização cultural, de confraternização, de congregação de pessoas jovens e idosas. É uma escola ou um conjunto de sistemas que levam ou convergem á arte.

O Individualismo versos o colectivo

O individualismo ou a superioridade de um músico pode ser útil apenas quando for indispensável, a bem do colectivo, ou se ao músico for exigido. Num determinado solo pode verificar-se que certo individuo tem mais propensão para o fazer que outro. Mas só aí. Não sempre que ele queira. Num colectivo o mais importante é o espirito de grupo não um só individuo. É muito mau quando o músico pensa em individualizar-se.

Outras marchas
Tenho mais três marchas militares que considero excelentes. Ponto Final; Ideais e a marcha Cap. Silva Dionísio.

Porque não continuou a escrever?

Não havia tempo. Como sabem, na percussão existem muitos instrumentos. Para os estudar a todos é preciso muitas horas por dia para corresponder com responsabilidade. Todos os dias de manhã eu tinha a banda da Guarda. Na parte da tarde e á noite tinha a orquestra. Não sobrava tempo para mais nada. Foi só por esse motivo que não escrevi mais.

Sabemos que fabricou muitos dos seus próprios acessórios e instrumentos. Como é que surge a ideia e porque se decidiu fabricar esses instrumentos e acessórios relativos à percussão?

Isso é outra história interessante. Na altura tinha muita dificuldade em encontrar batentes. Não havia em Portugal á venda. Mesmo no estrangeiro era difícil encontra-los. Muitas vezes os maestros da orquestra queriam sons na mão esquerda de um tipo, na mão direita outros com diferentes características, com diferentes alturas, eram situações dramáticas ás vezes. O que tinhamos na altura produzia sempre o mesmo som. Faziamos o melhor possível mas eu não ficava satisfeito com o material. Então, face á necessidade, resolvi fazer os meus próprios batentes. Nunca mais tive problemas em encontrar os sons que os maestros queriam. Entendo que um percussionista deve ter a noção exata dos materiais que necessita e de como funcionam. Os anos vão passando e em resultado das experiências fui evoluindo e passei a produzir os batentes para todo o tipo de instrumentos. Mais tarde comecei a fazer os instrumentos de lámina. Glokenspiel, Liras, que todas as bandas agora tem, mais leves e com maior projecção que as outras marcas. Xilofones, Marimbas, vibrafone etc. Não foi fácil começar ! Mas, como eu atrás referi não sou homem de me acomodar, e como eu fui músico e senti as limitações de alguns instrumentos até de marcas conceituadas, resolvi avançar e inovar nalgumas coisas. Por exemplo, as minhas liras em relação ás outras pesam menos 1,5 kg e por isso se tornam mais confortáveis, mais fáceis de manobrar que as outras. Tem projecção sonora, com excelente definição que se ouve a 1 km de distância. Muitas outras não. A minha lira permite ser virtuoso sem empastelamento do som. O mesmo não acontece em muitas outras. Nas láminas de madeira tenho também algumas inovações principalmente nos xilofones para filarmónicas.

Quanto a reparações. Repara tudo?
Sim. Reparamos tudo o que diga respeito a percussão. Nunca nos apareceu nada que não conseguissemos reparar.

Reconhece profissionalismo nas empresas fornecedoras de instrumentos de percussão? As nossas lojas de música sabem do ofício?

As casas que tem origem em alguns músicos não tem problema. Quanto ás outras já é arriscado. Os que nunca foram músicos, não tem sensibilidade para a questão da percussão e por vezes quando a coisa dá para o torto é muito complicado. Por exemplo: Recebi uma vez um par de tímpanos YAMAHA, que foram vendidos por uma casa da região centro, que já andava há meses há procura de quem resolvesse um problema porque não tocavam. E foi um problema facílimo de resolver. Mas essa casa não recebia o dinheiro porque a Banda não lhe pagava uma vêz que não funcionavam. É demonstrativo do deficiente profissionalismo de alguns vendedores. As bandas ficam mal impressionadas e as marcas perdem com isso. Aquelas que se inteiram da questão e se mantém em contacto comigo tem todos os seus problemas resolvidos com eficiência. Por exemplo a casa Cardoso & Conceição está sempre em contacto comigo para se inteirar de tudo o que diz respeito a percussão. A casa RUSSOMUSICA da mesma maneira, e pouco mais. Muito poucos estão habilitados a vender percussão sinfónica.

O Sr. Raul Cardoso está neste momento, 21 Ago.04, com 70 anos de idade. Tem um aspecto jovial, bem disposto, bem conservado. A que se deve a sua saúde de ferro, elegância e o espirito de juventude?

É o velho espírito de que fui para a percussão porque me queria mexer. Todos os sábados faço 60 e 70 kilómeteros de bicicleta. A manutenção fisica e mental não dispenso. Ando de moto todos os dias. De carro só quando é indispensável. Claro que tem reflexos na saúde.

Muito obrigado pela sua disponibilidade e por nos ter contado a sua história com tanta simpatia e afabilidade.

 

Excertos de uma entrevista do próprio ao sites Bandas Filarmónicas

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