Coros e Danças Medievais

  • Compositor: Candido Lima
  • Ano de Composição: 1978
  • Categoria: Suite
  • Duração: 10:00
  • Instrumentação: Banda

Notas de Programa

Em diálogo de rua entre músicos de Aveiro, do Porto e de Coimbra, às portas do Teatro Gil Vicente, em 2004, após um concerto com a primeira audição de ROMÂNIA-paisagens subterrâneas pela Orquestra Gulbenkian, encomenda do Festival Internacional de Coimbra, o jovem Maestro André Granjo abeira-se de mim e pergunta-me se eu não quereria compor uma obra para banda. Respondi-lhe que já tinha composto uma, em 1978, encomenda da Secretaria de Estado da Cultura, integrada num projecto apresentado a vários compositores portugueses, e citei os nomes. Perguntou-me onde a encontraria. Respondi-lhe que não a tinha, que nunca mais soube dela e que tinha desaparecido. Ficou por aí a conversa. Em 2007 recebo um telefonema de André Granjo, informando-me que tinha encontrado a partitura e que a tinha na mão. Perdida, para mim, durante três décadas, incrédulo, recebi a notícia como a surpresa e a emoção do ano, pois tratava-se de uma obra inundada de tempos, de estórias e de afectos registados apenas na minha memória. Mais tarde, em diálogos com o compositor pela internet, entre a Universidade do Norte do Texas e o Porto, o Maestro André Granjo reviu, corrigiu, adaptou, digitalizou, divulgou e dirigiu a obra em estreia absoluta nos Estados Unidos em Novembro de 2011. Em Portugal, em Novembro de 2013, a obra foi executada pela Orquestra de Sopros da Escola Superior de Música de Lisboa, por iniciativa do Maestro Alberto Roque, e fora do âmbito escolar, com estreia em 1 de Fevereiro de 2015, na Casa da Música, a convite do Maestro Francisco Ferreira, pela Banda Sinfónica Portuguesa dirigida pelo Maestro Pedro Neves. A obra é dedicada ao Maestro André Granjo.
Aceite o convite para escrever uma obra para as bandas filarmónicas portuguesas, pôs-se-me logo a questão de como conciliar campos tão distantes: as músicas de romarias e o pensamento contemporâneo. Compor uma obra contemporânea
no sentido estrito do termo para ser tocada nos coretos e nos caminhos das aldeias não parecia nem entusiasmante, nem viável, nem aconselhável do ponto de vista do compositor, nem dos músicos, nem do público. Assim, optei por um projecto que fosse técnica, psicológica, sociológica e musicalmente acessível e exequível por todas as bandas filarmónicas do país. Procurei uma abordagem que se afastasse dos clichés e dos repertórios de bandas e que permitisse uma nova abertura auditiva nesses espaços de cultura popular. Não se destinaria às festas ao ar livre, mas sim a recintos fechados, a salas populares ou a espaços semelhantes, onde a escuta de harmonias inabituais da música medieval raramente ouvidas pelo povo seria uma alternativa pacífica à escuta do caos festivo dos grandes arraiais, do folclore, das rapsódias e dos pot-pourri de músicas clássicas ou de
variedades.
Retomar pequenos trechos vocais esquecidos, escritos sobre textos latinos e textos portugueses entre 1972 e 1974, para grupos universitários, foi a ideia. Fazer a passagem de emoções corais para emoções instrumentais pouco familiares ao músico erudito só o ouvido interior o poderia conceber. Mas passados 30 anos (!) o compositor pôde testar, por fora, esse ouvido interior, com gravações enviadas, via internet, dos ensaios da Banda da Universidade do Norte do Texas pelo Maestro André Granjo!
O meu encontro com os sons reais foi assim! Desses trechos antigos de que me servi para compor pequenas peças corais ao gosto medieval, foram utilizados da missa tradicional o Kyrie, o Sanctus-Benedictus e o Agnus Dei que se destinaram à vozes masculinas do Orfeon Académico de Coimbra (que eu dirigi entre 1973 e 1975) para a missa do Dia da Universidade na Capela da Universidade. Foi em 1973. Estes três trechos (transformados nesta obra em Coros/Danças, a que a percussão dá ênfase) foram compostos no comboio durante as noites do trajecto de viagem entre Coimbra (para ensaios do coro) e Braga (onde residia). Os Dois Coros sobre textos latinos do Pange Lingua que, como nas restantes partes da obra, são cantados "a cappella" (o Agnus Dei tem órgão) foram escritos para um pequeno grupo de estudantes para uma sessão cultural na Faculdade de Filosofia de Braga, em 1972.
A Fuga é um trabalho académico a que se poderia chamar "fugue-piège" (tema equívoco entre harmonia de Bach, a fuga académica, e harmonia de Ravel, a fuga neoclássica!). A estrutura intervalar nuclear de quartas e quintas da fuga, eixos nucleares do organum medieval, permitiu a sua integração orgânica na estrutura de intervalos das restantes partes da obra com profundas afinidades com as técnicas da Ars Antiqua e da Ars Nova revisitadas nesta obra. O humor, a ironia e a irreverência são a marca de Coros e Danças Medievais, e nesta fuga mais ainda, com incrustações rítmico-melódicas como intrusos, como objectos estranhos que invadem a lógica clássica, a ordem formal e a ordem institucional. São técnicas de sobreposição de materiais heterogéneos que irão reaparecer nos coros finais, onde se encontram as sombras de Charles Ives, de Berio ou, de algum modo, das Missas-Paródia renascentistas.
Estes Coros finais foram escritos para um grupo de meia dúzia de estudantes do Orfeon Académico de Coimbra do pós-25 de Abril, a uma e a duas vozes, com a possibilidade de serem acompanhados por pequenos instrumentos de percussão, como se se tratasse de música medieval trovadoresca. São uma espécie de palimpsesto (prática antiga de se apagar um documento sobre o qual se escrevia outro documento), são melodias sobre poemas de Orlando Neves e de Manuel Alegre cantadas, aqui, por clarinetes, trompetes, trompas, trombones e bombardinos.
Encontram-se assim, em Coros e Danças Medievais, num espírito intemporal de "coincidência dos opostos", entrelaçados pelo instrumento e pela palavra o sagrado e o profano, o lúdico e o religioso, o litúrgico e o arraial, o sorriso e a ironia, o humor e a irreverência, a revolução e a esperança.
O paganismo orquestrado por procissões, por rezas e porromarias!
Os títulos dos "andamentos" desta espécie de suite de danças/corais poderiam ser assim: Preludium, Pange Lingua, Agnus Dei, Fuga, Sanctus e Benedictus, Agnus Dei, Que flores havia em nossa terra, É possível-música para um hino, Dança Final e Postludium, ou ainda, Dança I, Coro I/Dança I, Coro II, Dança II, Coro III/Dança III, Coro IV, Coro V, Dança IV, Dança V, Final.