Desde os meus tempos de jovem aprendiz clarinetista que o virtuosismo sempre me fascinou. A capacidade de exaltar o ouvinte com proezas técnico-musicais é algo que só está ao alcance de um punhado de artistas de topo, mas que deslumbra de modo idêntico ao das façanhas desportivas de certos atletas de elite. Esse virtuosismo é tipificado no nosso imaginário colectivo com personalidades como o fogoso Paganini ou o místico Liszt, que criaram algumas das mais exigentes obras solistas para os seus instrumentos (violino e piano, respectivamente). Mas também em outros instrumentos, nomeadamente de sopro, houve virtuosos-compositores que ficaram na história por nos legarem obras de grande brilhantismo técnico, até porque na Europa de meados do séc. XIX, a sociedade burguesa apreciava particularmente os saraus musicais com exibições de virtuosi. No caso do clarinete, destacaram-se, por exemplo, Ernesto Cavallini (1807-1874) em Itália ou Paul Jeanjean (1874-1928) em França. Em Portugal, José Avelino Canongia (1784-1842), o decano dos clarinetistas portugueses, também estabeleceu fama internacional como virtuoso, e compôs 4 concertos e dois temas e variações para o seu instrumento.
A forma musical predilecta para a exibição do virtuosismo foi sendo, frequentemente, o tema e variações, e de entre os temas predilectos para variar, o "Carnaval de Veneza" assume lugar de destaque. Na verdade, trata-se de uma canção tradicional napolitana, "Oh Mama, Mama Cara", sobre a qual Niccolò Paganini escreveu em 1829 umas exigentes variações para violino e orquestra. Nas décadas seguintes vários lhe seguiram o exemplo, e surgiram variações virtuosísticas para os mais diversos instrumentos, desde o cornetim, ao trombone, a flauta, e até o contrabaixo, a guitarra ou a harpa. Para clarinete, tanto Jeanjean como Cavallini escreveram igualmente variações sobre o "Carnaval de Veneza", no caso deste último, mais especificamente para a requinta, ou clarinete em Mib.
Em tempos, também eu ponderei escrever as minhas próprias Variações sobre o Carnaval de Veneza, e cheguei mesmo a acumular alguns rascunhos com esse intuito. O plano, na altura, acabou por não se materializar, mas quando em 2019 fui abordado pelo António Vieira, director artístico da Orquestra Portuguesa de Guitarras e Bandolins, para escrever uma obra concertante para clarinete solo e orquestra de plectro, a ideia do "Carnaval de Veneza" voltou e pareceu-me o momento ideal para (finalmente!) concretizar o meu antigo projecto. Concebida agora com o talento do clarinetista Horácio Ferreira em mente, e por encomenda da Associação Cultural de Plectro, a minha intenção foi criar uma peça que transportasse para o presente aquela novecentista exaltação do virtuosismo, no processo modernizando-a de alguma forma. Obviamente, a minha formação como clarinetista teve também um papel fundamental na concepção da parte solista, tornando-a, espero, mais idiomática. No fundo, proponho-me aqui revisitar uma forma antiga e tradicional, agora vista pela lente do séc. XXI.
Estas Variações são igualmente o meu contributo singelo para honrar a grande e vibrante classe dos clarinetistas portugueses, da qual faço parte com muito orgulho, e que com o contributo de todos tem granjeado enorme gabarito internacional. Bravi tutti quanti!
(Ago./2019)
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